Uma das mais belas lendas que conheço, e da infelicidade de um homem, que pela religiosidade e falta de entendimento do Sagrado de Outros Mundos, perdeu o Amor de uma Fada.
Dama Pé-de-Cabra, quadro de cerâmica (1942)
D. Diogo Lopes, senhor de Biscaia, era infatigável. Não se importava com o calor, a neve, nem se era de dia ou de noite quando estava na caça. Um dia bem cedinho, esperava um porco montês que estava sendo emboscado numa caçada. Mas então, ao invés de ouvir o porco a aproximar-se ouviu um belo canto. Olhou adiante, para um penhasco, e viu sentada sobre ele uma formosa dama cantando. D. Diogo nem se lembra mais do porco e vai o mais rápido possível até o penhasco. Pergunta então à bela dama quem era, a que lhe responde ser tão nobre quanto ele. D. Diogo oferece seu coração à dama, assim como suas terras e vassalos. Ela pouco faz de suas terras e vassalos, dizendo que ele precisava mais de seus bens do que ela. D. Diogo então pergunta o que poderia oferecer-lhe para que fosse digno dela. É quando a bela dama lhe diz que a única coisa que precisava fazer para que ela fosse sua era esquecer-se do sinal da cruz. Caindo em tentação, D. Digo pesou prós e contras, e chegou à conclusão que se fizesse algumas boas ações em nome de Deus até valia a pena nunca mais se benzer, desde que ficasse com aquela bela senhora. Levou-a para seu castelo, mas à noite, quando pode vislumbrar a formosa dama mais atentamente é que notou que ela tinha os pés como os de uma cabra. Por anos, dama e cavaleiro viveram felizes, chegando a ter filhos, D. Iñigo Guerra e Dona Sol.
O Senhor de Biscaia, D. Diogo, tinha um cão da raça alano, tão destemido quanto o dono para as caçadas. Já a mulher de D. Diogo, tinha uma cadela podenga de pelo muito negro. Enquanto o alano estava prostrado sem querer saber de nada, a podenga não parava de pular. D. Diogo, tentando animar seu cão, deu-lhe um grande osso. Mas no final das contas a podenga tomou-lhe o osso e feriu gravemente o alano. D. Diogo assustado com o que fizera a cadela, começou a dizer que era coisa do diabo e fazia o sinal da cruz. Conforme se benzia, a mulher começou a gritar como se estivesse ardendo em uma fogueira, com os olhos brilhantes, o rosto enegrecido, a boca retorcida e os cabelos arrepiados! Ao mesmo tempo, começou a levitar, a subir, com a filha segura no braço esquerdo e de mão dada ao menino. D. Diogo entrou em pânico ao ver a cena, e quanto mais subia a mulher pelos ares, mais seu braço se estendia segurando o menino. D. Diogo agarrou o filho e segurou-o firmemente enquanto a mulher terminava sua subida e sumia com a menina. Assim como a mulher, sua cadela também sumiu sem deixar rastro.
D. Diogo profundamente triste, passou muito tempo sem saber o que fazer. Até que resolveu voltar a lutar contra os mouros. Nesta época, D. Iñigo já era um rapaz, D. Diogo deixou tudo nas mãos do filho e partiu, ficando muito tempo sem dar qualquer notícia de seu paradeiro. Era sua penitência por ter vivido tantos anos com aquela mulher pé de cabra. Mataria tantos mouros quanto os dias que vivera com ela, e lutaria por tantos anos quantos vivera com ela. Mas acabou por tornar-se prisioneiro em Toledo. Seus aliados de guerra faziam trocas de prisioneiros, mas nunca tiveram consigo um mouro de tão grande nobreza como D. Diogo, nunca conseguindo trocá-lo.
D. Iñigo vendo esta situação, resolveu procurar sua mãe. Muito se falava sobre ela, que havia se transformado em fada para uns e em alma penada para outros. D. Iñigo explicou à mãe o que se passara com seu pai, e a Dama de Pé de Cabra resolveu ajudar o filho a resgatar D. Diogo do cativeiro. Deu a seu filho um onagro para transportá-lo a Toledo. Chegando a Toledo, D. Iñigo conseguiu aproximar-se da cela onde estava seu pai. O Onagro deu um potente coice na porta da cela, destroçando-a. D. Diogo montou no onagro acompanhando o filho, e dali fugiram em disparada. Mas a viagem para casa não foi tranquila. Pelo caminho encontraram um Cruzeiro de pedra, e o onagro ao avistar o cruzeiro parou e não saía mais do lugar. A voz da Dama de Pé de Cabra foi ouvida. Ela instruiu o onagro a evitar a cruz. Ao ouvir da voz da mulher, D. Diogo arrepiou-se todo. Nada sabia ele da aliança entre a Dama e seu filho Iñigo. Acabou por benzer-se. O onagro na mesma hora derrubou os dois de sua cela, e junto a isto a terra tremeu, abrindo um enorme buraco. Por este buraco, D. Diogo e o filho viram apavorados o fogo do Inferno que engoliu o onagro quase que instantaneamente. Pai e filho de tão atordoados acabaram por desmaiar. Assim que se recompuseram-se seguiram uma viagem longa até as terras do Senhor de Biscaia.
Ao chegar em suas terras D. Diogo penalizou-se, indo todos os dias à missa e confessando-se toda semana. Mas não viveu mais muito tempo, se pela idade ou por sua consciência não se sabe, o certo é que passados apenas alguns poucos anos, D. Diogo faleceu, deixando o título de Senhor de Biscaia para seu filho Iñigo. Já D. Iñigo, depois do resgate do pai, nunca mais entrou em uma igreja. Ninguém sabe qual foi o acordo que fez com sua mãe para conseguir resgatar seu pai, mas entrar em igreja não entrou mais. Muito se disse sobre isto, inclusive que fizera um pacto com o Diabo. E para acrescentar esta desconfiança das pessoas, D. Iñigo, desde então, era imbatível, nunca perdendo uma batalha.
Fonte: HERCULANO, Alexandre – Lendas e Narrativas – Imprensa Nacional/Viúva de Bertrand e Filhos, Lisboa, 1851.
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