" Leve é o Corpo que se solta, Livre é a Alma que se entrega ao Amor.... Segue O que se ergue no Horizonte!"

- Grande Mãe, recebida por Ísis de Sírius

06 dezembro, 2012





O reflexo do Sol espelhado na água fresca da lagoa, suaviza e ilumina ainda mais o contorno dos seixos redondos e pretos no fundo, criando um padrão brilhante que interrompo com os pés.
A olhar para este padrão, a minha mente divaga... o único elo que me prende á realidade é o cansaço extremo de tanto correr, que me leva a mergulhar os pés na lagoa e me alivia a dor.
O peso da criança que carrego ás costas, embrulhada num pano, reconforta-me no meio da situação emergente em que me encontro.
A respiração ofegante e os soluços da rapariga mais nova ao meu lado, leva-me a olhá-la preocupada e alerta-me para o perigo que espreita por trás da vegetação cerrada da selva, em volta da lagoa.
Conheço uma mulher velha que me salvou na noite em que dei á Luz. Ela é a única que pode esconder a minha Irmã... mantê-la a salvo, nas Ilhas mais afastadas da nossa. Esta velha é a minha única esperança, para que a minha irmã não tenha o mesmo fim que as virgens do solísticio.
O único pagamento que me exigiu, foi a minha vida em troca... uma vida ao serviço da Mãe Terra. A velha não tem ninguém a quem deixar o seu legado e precisa de uma mulher jovem e forte a quem ensinar e passar o conhecimento. Quando eu nasci, ela já era velha... muito velha... e sempre me olhou, sempre me avaliou... sempre me sondou...

Os olhos grandes e amendoados da minha irmã, olhavam-me aterrorizados. Os caracóis escuros que lhe desciam em cascata pelas costas, cobrindo-a até á cintura, colavam-se á sua pele suada e dourada. A sua beleza desponta mais a minha dor e o medo de perdê-la desperta-me para a realidade.
Olho de novo para o fundo da lagoa... remexo os seixos com os pés. Levo as mãos em concha cheias de água fresca e lavo a cara e mato a sede.
A criança mexe-se nas minhas costas, inquietado solta uns arrulhos de sono e sossega novamente. É bom que não acorde agora. Já falta pouco...
Consigo ouvir ao longe, os ecos das palavras iradas trazidas pelo vento, dos homens que nos perseguem. O pãnico invade-me de novo. Levanto-me de um salto e puxo a minha irmã pela mão. Abandonamos a lagoa numa corrida desenfreada.
Eu sei que o pai do meu filho está com aqueles que nos perseguem. Tenho pena que ele não compreenda o motivo, o amor que sinto pela minha irmã, que me levou a enfrentar os Anciões, a desrespeitar e a renegar as tradições do meu povo e dos deuses... abandonando a aldeia antes que a afogassem com as outras virgens na fonte sagrada, num ritual escuro e antigo.
Mas eu não confio nos anciões... nem acredito nos nossos deuses que exigem sangue virgem a cada quatro anos...
Afasto as folhas gigantes  que me arranham a cara, os braços e as pernas na minha fuga desesperada. As minhas pernas dão-me sinais de que podem sucumbir a qualquer momento, as lágrimas correm enevoando a minha visão.
A minha irmã também chora exausta e com medo, chora alto e acorda o meu filho que agora berra com fome e com medo do nosso ritmo acelarado.
O pãnico invade-me e segundos depois a vegetação fica para trás, e sinto os meus pés pisarem a areia fria da praia. Está quase a anoitecer e temos que ser rápidas!
Ao fundo da praia, á beira mar... numa canoa minuscula a Anciã espera-nos com uma expressão de tranquilidade absoluta.
Descemos até ela aos tropeções. Não há tempo para cumprimentos nem saudações. Empurramos a canoa para o mar e saltamos para dentro dela. A velha e a minha irmã começam a remar, enquanto eu puxo o meu filho para a frente e o abraço contra o meu peito, acalmando-o.
Passamos a rebentação e sinto a canoa baloiçar violentamente sobre as ondas e ao longe vejo por fim os homens a chegarem á praia e a praguejarem na nossa direcção.
Chegaram tarde.
A Anciã ri alto, numa gargalhada... a minha irmã chora de alívio...  enquanto eu não tiro os olhos da praia, fitando os olhos de um rosto assombrado... do homem a quem roubei o filho, e que nunca mais verei nesta vida, ou em outra.

Mas não me arrependo de ter escolhido a Vida, em detrimento de uma tradição de morte.
Fecho os olhos, embriagada pelo baloiçar da canoa e rezo aos meus Pais, para no mundo onde estiverem, abençoarem e aprovarem o que fiz para salvar a minha Irmã.
Que os nossos antepassados nos protejam...

- Susana Duarte em Viagens da minha Alma

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